quarta-feira, 8 de julho de 2009

Especial Futebol (IV): O Futebol-Empresa

Pretendemos trazer à discussão uma forma de gestão do futebol que faz o jogador passar obrigatoriamente por um empresariado credenciado. O sonho de 11 entre 11 dirigentes é empresariar e elitizar o futebol, transformando-o num caro espetáculo cultural. Por Tiago Ripa

Não há novidade alguma em dizer que os grandes veículos de comunicação sempre caminharam pari passu com os coronéis que, desde os tempos de Charles Miller, estiveram à frente da desorganizada organização do futebol brasileiro. Seria redundante, da mesma forma, evocar o sentido colonialista impresso ao futebol brasileiro de exímio fornecedor de matéria-prima e celeiro de craques, cujo “pé-de-obra” abastece o grande centro econômico do futebol mundial que é o continente europeu. Porém, a naturalização imposta aos últimos movimentos políticos e econômicos desenhados em tão fértil terreno dão conta de uma transformação sem precedentes na estrutura do esporte, sobretudo após a aprovação em 1998 da Lei Pelé - aclamada como a Lei Áurea [lei que aboliu a escravatura] do futebol brasileiro por extinguir os direitos de posse dos clubes sobre os jogadores - e a definitiva entrada em campo de um personagem até então mal definido: o empresário/agenciador de jogadores e técnicos. Sem qualquer alusão a um passado idílico, decorridos 11 anos desde a oficial ascensão destes investidores, cuja atuação mais descarada e explícita se dá através da firmação de simultâneas “parcerias” com variadas agremiações, não cessam as dúvidas quanto à lisura de suas ligações com atletas, times e entidades esportivas. Operando esquemas de grande influência e movimentando cifras altíssimas no mercado mundial, sua capacidade de interferência dentro das quatro linhas de jogo já é dada como certa. As questões que suscitam estas novas jogadas põem na marca da cal o ideal lúdico do jogo, as históricas tradições das equipes e a relação direta estabelecida com os torcedores. E tudo isso não somente com a anuência da mídia esportiva, mas inclusive com sua participação direta nas mais altas esferas de poder que hoje regem o mundo da bola.

Em recente matéria de capa (13 de maio de 2009) a parcial revista Veja atesta e reforça aquilo que considera a nova panacéia no futebol brasileiro: “Gol de ouro - O milionário negócio de descobrir, treinar e vender para a Europa ‘craques-bebês’ brasileiros une clubes, famílias e investidores”; poucos dias depois (23 do mesmo mês) foi a vez da comprometida Folha de São Paulo vangloriar a emergência de clubes-empresas no Brasil, liderados por reconhecidos magnatas brasileiros e estrangeiros; a manchete “Milionários viram donos de clubes em SP” dialoga com o subtítulo, que lamenta a “penúria das divisões de acesso” e faz coro à idéia defendida pela revista da editora Abril de formação e venda/empréstimo de atletas a grandes clubes do Brasil e de fora.

Para além de problematizar os interesses que levam grandes e bem sucedidos capitalistas como Abílio Diniz, J.Hawilla, ou empresas como a farmacêutica EMS e a varejista Sondas a investirem no futebol - suspeita-se que os interesses em comercializar mercadorias (na versão capitalista do futebol os jogadores também são mercadorias) sem valor fixo de mercado seria a forma mais prática para se justificar a origem de valores escusos - e considerando também a formação de uma classe de empresários especializados na área, o que se pretende trazer à discussão é o preocupante movimento de afirmação de uma forma de gestão do futebol que faz o jogador, ou aspirante a sê-lo, passar obrigatoriamente por um empresariado credenciado a abrir as portas e fazê-lo transitar pelo obscuro mundo da cartolagem do futebol. A salvo destes intermediários, somente aqueles que já atingiram reconhecido prestígio internacional e podem dispensar seus serviços; do outro lado, jogadores profissionais que não conseguem e nem podem se desvencilhar desta marcação e a grossa maioria dos meninos e jovens - desnecessário enfatizar que quase em sua totalidade de origem pobre - que vêem no futebol o único projeto de futuro. Estes, desde muito cedo cultivando a esperança da fama e da ascensão social, são presas ainda mais fáceis para estas espécies de profissionais do aliciamento, verdadeiros alcoviteiros do mundo da bola.

Motivados pela sanha do lucro rápido com o talento/trabalho alheio, os investidores do futebol apostam agora suas fichas numa nova menina dos olhos: “Centros de Treinamento” que pululam aqui e acolá, vinculados ou não a times reconhecidos; já sobressaem, inclusive, equipes/empresas especializadas somente na formação do jogador, sem atuação em campeonatos oficiais. Alguns adotam regimes de preparação intensiva, onde do nascer ao pôr do sol os meninos são moldados de acordo com as demandas do futebol internacional: força física, disciplina, eficiência e bom comportamento; tudo realizado sob os auspícios dos agentes e formalizado através de contratos, formais ou não, que vinculam transferências e rendimentos por longos anos aos “formadores” dos atletas. O mais perverso de todo este cenário é que, além da ideia estar travestida de boa ação, ela opera justamente dentro de uma lógica que nada mais faz do que espelhar e reforçar a desigualdade e exploração que grassam em nossa sociedade. Tomemos o exemplo do Cruzeiro E.C. (Minas Gerais), um grande clube brasileiro, referência por suas modernas estruturas e Centro de Treinamento: de 3500 garotos que tentam a carreira profissional em suas divisões de base, na média somente 1 ou 2 conseguem atingir o profissionalismo, não necessariamente o sucesso. A nível nacional os dados são ainda mais assustadores: dentre os jogadores profissionais brasileiros 82% ganham entre 1 e 2 salários-mínimos e somente 1,3% tem rendimentos superiores a R$ 3.500 (dados: Atlas do Esporte e Sindicato dos atletas profissionais do estado de São Paulo).


Roman Abramovitch

Paralelamente, dando corpo a esta nova tendência, medidas adotadas por times tradicionais e por novas agremiações parecem vaticinar o futuro empresarial que passa a contagiar as equipes, sobretudo no que diz respeito à manutenção dos privilégios da classe dos dirigentes esportivos e do equilíbrio entre a legalidade e a criação de subterfúgios na legislação esportiva, que dão aporte à rapinagem legalmente instituída, praticada por agentes e cartolas. Para se ter um bom exemplo, basta tomar a recente proibição imposta pela FIFA de jogadores serem vinculados a empresas que não se definem como entidades esportivas. Criou-se uma situação proibitiva na qual a saída encontrada pelos empresários foi comprar, literalmente, equipes de futebol. Na Inglaterra 15 dos 20 times da primeira divisão são propriedade de magnatas estrangeiros (fonte: futebolmagazine.com), e o clube expoente desta forma de administração, o Chelsea, é do bilionário russo Roman Abramovitch, mesmo dono, aliás, do CSKA de Moscou [Moscovo] e cujos investimentos já chegaram ao Brasil por meio da MSI-Corinthians; na Itália, o premiê [primeiro-ministro] Silvio Berlusconi é proprietário de uma série de canais de TV e jornais e também do A.C. Milan; no Brasil, como reza nossa vocação de cópia “cuspida e escarrada” (e não “esculpida em Carrara”, como seria na origem a expressão) dos movimentos econômicos do primeiro mundo, já começamos a dar nossos passos neste mesmo sentido. O empresário Eduardo Uram comprou o Tombense F.C., time da 2ª divisão mineira a quem está vinculado, por exemplo, o zagueiro Tiago Silva, ex-fluminense e hoje no Milan; Obina, recém-transferido para o Palmeiras, mesmo time onde atua Diego Souza, colega de procurador. O uruguaio Juan Figer, antigo agenciador do futebol brasileiro desde a década de 70, comprou o C.A. Rentistas, de Montevidéu (Uruguai); por seus quentíssimos contatos e respeitável influência negociou a ida de (W)Vanderlei(y) Luxemburgo ao Real Madrid e as milionárias transferências dos jogadores como Robinho e Júlio Baptista. J.Hawilla, dono da empresa de sugestivo nome, Traffic, parceira da Rede Bandeirantes e da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol), vinculou-a ao recente clube que fundou, o Desportivo Brasil, que mantém contrato com jogadores no Palmeiras, Corinthians, São Paulo, Fluminense, Cruzeiro, entre outros times. É a Traffic quem está por trás de jogadores como Keirrison, Elias, Hernanes, Fred. Wagner Ribeiro, ex-procurador de Kaká, Robinho e atualmente com mais de 100 jogadores (Neymar é sua bola da vez), iniciou recentemente uma “parceria entre parceiros”, juntando parte de seus negócios com a Traffic de J.Hawilla. Corroborando com esta sombria realidade, vários clubes tradicionais e de reconhecimento no cenário nacional já arrendaram a gerência do departamento de futebol, do profissional às divisões de base, a empresas ou grupos de empresários. Basta uma olhada rápida para ver o que se tornou a tradicional Copa SP de Futebol Jrs.: um verdadeiro portfolio de garotos presos a empresários. E ano após ano a safra é colhida cada vez mais cedo - a Federação Paulista de Futebol, que organiza a Copinha, reduziu de 23 para 21 anos, depois para 20 e agora para 18 anos a idade máxima dos atletas que disputam este torneio. Outras equipes ainda, incapazes de competir com a ferocidade do empresariado, aboliram definitivamente as divisões de base, o nascedouro de jogadores, criando uma situação absolutamente inédita e preocupante. É o caso, para se tomar um exemplo fortuito, do C.A. Bragantino.


Wagner Ribeiro

Há também um outro aspecto que marca de modo ainda mais ferrenho o ideal de competição pela sobrevivência dentro do mundo da bola. Além da já apontada obrigatória comunhão com os interesses de agentes atravessadores, os jovens em processo de formação até o almejado futuro de boleiro passam por verdadeiras provações, das quais os responsáveis únicos pelo sucesso ou pelo fracasso são somente eles próprios, preparados ou não que estejam para o sucesso ou o fracasso. Diferentemente dos processos de formação de atletas através das categorias de base das agremiações, passando pelas reconhecidas “escolinhas”, cujo start está circunscrito aos processos de militarização do futebol brasileiro nas décadas de 60/70, e nas quais a passagem por diferentes etapas conduzia os mais bem preparados ao time profissional, nos dias de hoje trilhar o caminho rumo ao profissionalismo e ao sucesso implica necessariamente em vencer pelas próprias forças num processo de acirrada competição não mais definido entre os jogadores de um time contra os jogadores de outro, mas agressivamente disputado entre os próprios jogadores de um mesmo time. Um verdadeiro serpentário moderno à moda do “salve-se quem puder”. Onde antes tínhamos históricos esquadrões, que sabíamos de cor do goleiro ao ponta-esquerda (afinal, eram jogadores que ficavam em nossos times por 5, 10 anos), hoje temos “equipes mutantes” que se esfacelam de um ano para outro (basta comparar as equipes do Santos F.C., bicampeão brasileiro em 2002 e 2004, ou as equipes campeãs brasileiras do São Paulo F.C. de 2006 e 2008). Das idealizadas “máquinas de jogar futebol”, compostas por craques e grandes jogadores, cujas histórias estavam atreladas ao time que defendiam, passamos à verdadeira “terra de cegos”, onde se espera que qualquer jogador acima da mediocridade engate no início da temporada europeia ou durante as programadas “janelas” uma transferência para o mercado externo a título de lucro. Investidores, Cartolas, jogadores e por vezes até a própria torcida já naturalizaram este discurso perverso e insidioso. Entre a formação e o esquecimento de pseudo-ídolos que despontam e “se mandam” está se reforçando um estigma que torna nosso futebol um lugar de passagem, um futebol provisório rumo a mercados mais atrativos. O futebol no Brasil está se tornando verdadeiramente uma divisão de acesso, uma segunda divisão do futebol mundial.


Dunga com os patrocinadores da CBF

Consequência direta desta gestão laissez-faire capitaneada pela CBF, instituição máxima do futebol brasileiro, é a fragorosa baixa na qualidade do futebol jogado por estas bandas, opinião unânime entre torcedores de diferentes times. Outras questões dão ainda sustentação à argumentação: ao lado da anunciada bancarrota financeira dos clubes brasileiros, onde administrações fraudulentas ganham permissiva naturalidade, vê-se crescer a admiração pelo futebol jogado lá fora e por craques de outros países. Nunca se viu tantas camisas de times estrangeiros por aqui. Sem recorrer a qualquer nacionalismo farsesco, estamos envolvidos, de fato, por ações norteadas pelo mesmo sentido colonial: vendemos a matéria-prima (jogadores) e compramos os produtos prontos (transmissões, camisetas de times, ídolos, jogos eletrônicos, estilos de jogo, etc.). Se há pouco tempo atrás somente grandes craques eram seduzidos por propostas de grandes times estrangeiros, geralmente da Itália ou Espanha - onde se disputavam os campeonatos mais ricos - hoje abriram-se canais de transferências em recônditos países da Ásia, Leste Europeu, Oceania, para jogadores que jamais conseguiram se firmar em times brasileiros de médio e pequeno porte. A eterna manutenção dos mesmos privilégios aristocráticos, os campeonatos sempre mal organizados, os times com estrutura econômica fraca conduzem a uma situação que deixa mais do que evidente a incapacidade de fazer frente às propostas do exterior; na boca da cartolagem a consequência de uma política nefasta é justificada como se sua própria causa não fosse resultado direto de suas mesmas ações. Seguindo nesta mesma linha, não surpreende que esta tendência se reforce com a seleção de Dunga dando tanto espaço para jogadores antes tidos como “2ª linha” de exportação (a lista de convocados inclui nomes como Afonso Alves, Fernando, Daniel Carvalho, Rafinha, Jô, Bobô), alguns, inclusive, coincidentemente ligados a empresários com ótimas relações com mafiosos/cartolas de fama internacional (vide Boris Berezovsky, Badri Patarkatsishvili, Rinat Akhmetov, negociantes com atuação em times da Europa e da América), sem falar no já manjado esquema de convocar para a seleção, valorizar e transferir por suntuosas cifras.


Site da CBF hospedado no portal da Globo

A CBF, por sua vez, continua a fechar novas cotas de patrocínio (somando agora 6 as empresas que injetam dinheiro na entidade: Guaraná Antarctica, Vivo, Itaú, Gillette, Tam e Nike), a firmar contratos para a Copa de 2014 e, o mais curioso de tudo, a fechar ano após ano com balancetes dignos dos mais iniciantes amadores (vide o déficit de R$ 22,1 milhões apresentado em 2006). O triste cenário torna-se ainda mais sombrio dadas as nulas perspectivas de mudanças. O Clube dos 13, cujo surgimento em 1987 trazia a proposta de rompimento com a CBF em nome dos interesses financeiros dos grandes clubes, rapidamente encontrou seu lugar sentando-se à mesa com a gestora do futebol brasileiro. Em relação à classe dos jogadores, não existe qualquer forma de organização sindical por parte dos atletas e sequer se tem notícia da existência de um sindicato que atenda unicamente aos interesses de boleiros do país. A mobilização das torcidas, fortalecida por meio das Organizadas, ainda esbarra em poréns internos e externos, como a troca de favores com administradores de clubes e a massacrante estigmatização midiática de serem os responsáveis por levar a violência aos estádios. Sua força política, marcante durante os anos da ditadura, dá hoje alguns sinais de retomada, que, embora ainda restritos, parecem ser os únicos clarões que despontam no fim do túnel. A grande mídia, por sua vez, continua a cumprir os mesmos papéis, rezando a mesma cartilha e preparando o terreno pra aquilo que é o sonho de 11 entre 11 dirigentes: empresariar e elitizar o futebol brasileiro, transformando-o num caro espetáculo cultural. O risco deste projeto a própria Veja enunciou, em ato falho e subliminar, ao usar na manchete de capa uma expressão emprestada de uma regra do futebol, evocando o dispositivo que encerrava a partida quando algum time marcava um gol durante a prorrogação (tempo-extra): “Gol de Ouro” também recebeu o nome de “Morte Súbita”, nome, aliás, bem mais sugestivo que aquele. Resta comprovar se a morte do futebol brasileiro será mesmo repentina ou lenta e dolorosa. A Copa no Brasil, em 2014, já anuncia os novos tempos de gentrificação do futebol. Quem vai querer pagar para ver?

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