sábado, 20 de março de 2010

Futebol, identidade e questões raciais

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Para Gerson Wasen Fraga, doutor em História, mais do que um evento esportivo, uma Copa do Mundo mobiliza sentimentos nacionais, interesses econômicos e de Estados

11/03/20
Miguel Enrique Stédile
de Porto Alegre (RS)

Construir uma identidade nacional em uma nação fissurada por conflitos sociais e raciais em décadas anteriores. Uma Copa do Mundo como oportunidade de demonstrar ao mundo sua modernidade e desenvolvimento. Poderíamos estar falando da Copa da África neste ano, mas estes eram também os sentimentos em torno da Copa de 1950 no Brasil.

O doutor em História pela UFRGS, Gerson Wasen Fraga, estudou a construção da identidade nacional a partir daquele evento esportivo. Em entrevista ao Brasil de Fato, Fraga discute estas delicadas relações entre o futebol, identidade e questões raciais.

Brasil de Fato - O que significava em 1950 receber a Copa do Mundo aqui no Brasil?

Gerson Wasen Fraga - Receber um evento esportivo de magnitude internacional sempre significa projetar alguma atenção sobre o país que o organiza. Quando a sede se localiza em algum país que não integra o grupo daqueles considerados como “de primeiro mundo”, isto é ainda mais reforçado, pois representa uma chance ímpar de não frequentar as páginas dos principais periódicos do mundo apenas como um lugar exótico ou o palco de alguma tragédia qualquer.

Em 1950, isto já era uma preocupação dos dirigentes brasileiros em passar uma boa imagem do país para o exterior, especialmente através dos jornalistas e dos jogadores estrangeiros que viessem ao Brasil, já que os turistas, torcedores de outras seleções, eram poucos naquele momento. E esta boa imagem necessariamente envolvia a percepção de um país moderno, desenvolvido e organizado, o que contrariava o senso comum de que o Brasil era apenas um punhado de cidades cercadas por selvas, onde as ruas comportavam feras selvagens e indígenas andando nus em meio a um povo sem iniciativa para nada.

Dentro desta lógica, por exemplo, é que se deve entender a construção de um estádio das dimensões do Maracanã, afinal, erguer o maior estádio do mundo em um curto espaço de tempo seria uma prova incontestável da capacidade de realização do povo brasileiro. Lembremos que boa parte dos nossos intelectuais, na primeira metade do século 20, difundia a ideia de que éramos um povo triste, sem iniciativa para nada que fosse além do necessário para a subsistência mais imediata.

Haviam outros interesses em jogo?

Uma Copa do Mundo nunca é um evento tão somente esportivo. Há uma série de interesses que perpassam pela sua realização. Em 1950, Mendes de Morais, então prefeito do Rio de Janeiro, não somente assistia as partidas do selecionado brasileiro no Maracanã, como ainda esperava dar seu nome ao estádio, ao mesmo tempo em que um busto seu ornava a entrada principal. Não há dúvida alguma de que ele, assim como outros tantos mandatários, tinha interesse em se promover politicamente com uma conquista brasileira naquele momento.

Há semelhanças entre a expectativa com a Copa de 2014 e o que ocorreu em 1950?

Assim como os contextos históricos, as expectativas são diversas. Em 1950, o que queríamos era afirmar, diante do mundo, nossa condição de modernidade. De lá para cá muita coisa mudou. Contudo, há dois pontos que certamente serão lembrados em 2014 e que se aplicam também à África do Sul agora. Primeiro, a organização deverá ser perfeita, caso contrário, não faltará alguém que associe eventuais falhas à nossa condição de “país em vias de desenvolvimento”. E segundo, há a questão da segurança. Não por acaso a África do Sul apressou-se em afirmar ao mundo, após o atentado sofrido pela seleção de Togo na última Copa Africana de Nações, que Angola é outro país, e que a organização de um evento nada tem a ver com outro, pois, aos olhos de muitos segmentos do “primeiro mundo”, o continente africano, assim como a América Latina, é um todo homogêneo. Da mesma forma, as constantes explosões de violência no Rio de Janeiro costumam ser percebidas como uma ameaça à realização dos eventos de 2014 e 2016, e provocam declarações apressadas das autoridades de que tudo sairá a contento.

Com a Copa de 2014 e as Olimpíadas em 2016, entramos num clima de “ninguém segura este país”. Há diferenças entre este ufanismo vivenciado agora e aquele de 1950?

Na Copa de 1950, muitas das expectativas projetadas sobre o futebol eram de outra natureza, digamos, mais voltadas à afirmação de nossa identidade. Era através dele que esperávamos afirmar para o mundo a nossa capacidade de engenho e conquista. Ao mesmo tempo, havia uma certa inocência do brasileiro em relação ao seu selecionado e seu próprio país, julgávamos que o sucesso no campo de jogo poderia extrapolar de alguma forma para outras áreas da vida. Hoje, o ufanismo em torno da realização da Copa de 2014 possui outros ingredientes, talvez mais “pragmáticos”. Por exemplo: as pessoas que comemoravam a indicação brasileira diante das câmeras de televisão não comemoravam apenas o orgulho de terem mais uma Copa em seu país. Na verdade, este talvez seja o menor dos fatores. Não será nenhuma surpresa se após a Copa de 2010, as notícias sobre a preparação material das cidades que servirão de sedes ou mesmo de sub-sedes ganharem espaço igual ou até maior do que a própria preparação da seleção brasileira para o certame. Fora isto, há o ufanismo da imprensa, que, historicamente, pouco se difere do ufanismo do torcedor: comemoram-se as vitórias da seleção como algo coletivo, exaltando especialmente uma ou duas figuras principais, e procuram-se os responsáveis nos momentos de derrota.

De qualquer forma, esta relação entre futebol e identidade nacional é sempre complexa. Como explicar estas construções?

Por mais que tenhamos consciência de que o sentimento de nacionalidade seja algo construído ao longo de nossas vidas, essa construção se dá através de instrumentos muito eficientes. Normalmente, as pessoas começam a aprender que possuem uma nacionalidade definida muito cedo, com a família. Quando chega a época da escola, passamos a aprender sobre símbolos pátrios, sobre as datas comemorativas, sobre as virtudes, reais ou não, de nosso país... Nesse contexto, uma Copa do Mundo ou mesmo os Jogos Olímpicos são um prato cheio para ser trabalhado. É interessante ainda notar que há um aspecto desta identidade que você acaba aprendendo não na escola, mas fora dela: a de que a sua identidade só existe porque existem outras que lhe são apresentadas como opostas, enquanto outras ainda lhe são completamente ocultadas. Um bom exemplo disto é nossa pretensa relação de rivalidade com o selecionado argentino. Você não aprende – ou ao menos não deveria aprender – na escola que os argentinos são seus rivais. Por que não, ao invés disto, explorar a existência de uma identidade comum latino-americana?

Nesta construção de identidade, entram também os interesses do Estado, não?

Há a atribuição de uma carga ideológica passível de ser explorada pelo Estado – seja ele qual for – que é inerente a competições desta magnitude. As vitórias da Itália em 1934 e 1938 foram apresentadas ao mundo como vitórias do fascismo. Em 1954, a Alemanha ganhou não somente uma Copa, mas o direito de poder se auto-celebrar novamente após o nazismo, enquanto em 1990 sua conquista não pode ser dissociada das comemorações pela reunificação do país após a Guerra Fria (o que esta reunificação significou para os povos da antiga Alemanha Oriental é algo que ficou de fora dos holofotes naquele momento). Já para o Brasil e a Argentina, as conquistas dos anos 1970 foram vendidas pelos regimes militares como uma prova de sua eficiência, de que internamente tudo ia bem.

Convém destacar que, em verdade, as conquistas esportivas são capitalizadas pelos Estados, independente de qual seja o matiz ideológico de seu regime. Não é a toa que equipes ou atletas vencedores são recebidos por governantes, pois eles são a representação de uma pátria que se quer vencedora. O que tornou os casos da Itália nos anos 1930, do Brasil em 1970 e da Argentina em 1978 tão emblemáticos, é a crueldade de tais regimes, capazes de promover grandes festejos enquanto torturavam e matavam seus próprios cidadãos nos porões de suas ditaduras.

A derrota de 1950 teria sido atribuída aos jogadores negros do time. Na tua opinião, de lá para cá, houveram avanços no debate racial na sociedade brasileira?

No caso da Copa de 1950, há uma coisa muito curiosa: se você for procurar nos jornais da época, você encontrará várias versões diferentes sobre quem seria o culpado pela derrota. Nem todos os cronistas esportivos culparam Barbosa, Bigode e/ou Juvenal e, aqueles que assim o fizeram, não vincularam, explicitamente ao menos, esta culpabilidade à questão racial.

Há um trabalho de uma historiadora carioca chamada Gisella Moura, chamado “O Rio corre para o Maracanã”, onde ela aponta que esta culpa atribuída especificamente aos jogadores negros não foi algo criado naquele momento, e que poderia, assim, ter sido gerada ao longo dos anos seguintes. Eu, quando levantei as fontes para meu trabalho, igualmente não encontrei nenhuma atribuição de culpa individual que explicitasse a questão racial. No entanto, me pergunto se isto seria necessário, dada a proximidade histórica entre a abolição da escravatura e a realização da Copa no Brasil, afinal, não é humanamente impossível que um ex-escravo se encontrasse nas gerais do Maracanã no dia 16 de julho de 1950.

Os preconceitos sociais são estruturas de pensamento, e isto não é algo que se mude do dia para a noite. As manifestações racistas ainda são frequentes em qualquer campo de jogo ou arquibancada ao redor do mundo, e creio que infelizmente ainda teremos um longo trajeto até que estas coisas mudem. Este, aliás, deverá ser um aspecto importante a ser notado agora na Copa de 2010, uma vez que a África do Sul parece ser o palco por excelência para campanhas contra o racismo, ao mesmo tempo em que o discurso da unidade nacional em torno da seleção sul-africana deverá ser utilizado na tentativa de aparar as arestas que ainda existam dos tempos do Apartheid.

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