quarta-feira, 8 de julho de 2009

Especial Futebol (III): Futebol de Várzea - caminhos de insubordinação

Fechando o Especial Futebol e Política, o Passa Palavra publicou os dois últimos textos sobre esta intrínseca relação.

O terceiro, “Futebol de Várzea – caminhos de insubordinação”, é assinado por Rafaaa e versa sobre a organização varzeana e seus princípios de solidariedade.


A prática do futebol de várzea continua como uma das principais modalidades de lazer associadas a um modo próprio de organização, pautado em princípios mais justos e igualitários. Por Rafaaa

O futebol é um esporte muito praticado no mundo, porém quando se fala sobre esse tema logo pensamos nos jogos entre times profissionais que circulam pelos diversos tipos de mídia. Esquecemos que existem outras formas de organização que disputam muito mais do que simples partidas de futebol, como por exemplo, o conhecido futebol de várzea ou futebol de bairro.

Com a crescente prática do futebol no Brasil, no final do século XIX e início do XX, uma grande quantidade de times passa a disputar suas partidas nas várzeas dos rios. Não é por acaso que os imigrantes se estabeleceram nas beiras dos rios, próximos aos seus locais de trabalho. A várzea sempre foi vista como sinônimo de atraso diante de uma política nacional desenvolvimentista apoiada por idéias excludentes sobre os moradores das várzeas antigas, o que não difere muito do tratamento que hoje se dá às favelas.

Ainda em 1901, uma ação conjunta do Clube Atlético Paulistano com a prefeitura municipal de São Paulo passou a transformar o antigo velódromo da cidade, localizado na rua da Consolação, em um campo de futebol. O Paulistano era um clube onde as elites freqüentavam, portanto o acesso a tal campo passou a ser restrito somente aos times convidados, ou seja, times ligados às elites, ocorrendo assim, a segregação entre times da elite e times populares.

O processo de urbanização da cidade de São Paulo, a partir das décadas de 1920/1930, estabeleceu uma nova configuração social devido, entre outras coisas, à retificação dos rios e ao remanejamento da população para áreas afastadas dos centros. A especulação imobiliária começa a atuar de maneira avassaladora e a população passa então a correr de maneira contrária a esse alto custo de vida que os trabalhadores não conseguem manter, portanto as periferias começam a ganhar espaço no cenário urbano. Juntamente com as pessoas, se deslocam objetos, relacionamentos, idéias, entre outras coisas que representam novas formas de organização, e não ficando de fora dessas mudanças, a prática do futebol de várzea aparece como um fenômeno que resistiu, e ainda resiste, às fortes tentativas de segregação e exclusão da elite.

A questão racial foi um grande problema no cenário futebolístico do início do século XX, quando os clubes de elite, com atitudes racistas, não aceitavam negros em seus times de futebol. Alguns jogadores negros chegaram a participar de times ligados às elites, pois eram inegáveis suas habilidades técnicas, porém o preconceito foi sempre imposto diante de uma crescente popularização do esporte. Alguns artifícios foram usados para “esconder” traços da identidade negra em campo, como por exemplo, o uso de gomalina (gel), que os jogadores passavam nos cabelos para alisá-los, além do conhecido pó-de-arroz. Além da exclusão dos negros, a prática desse esporte estava restrita aos associados dos clubes, ou seja, os ricos da sociedade. Em contraposição a essa atitude dos times de elite, os times populares continuaram surgindo e se proliferando, primeiro nas margens dos rios e depois nas grandes periferias urbanas onde o acesso à prática do futebol era feito de maneira mais democrática, assim como podemos ver nos exemplos do Liberdade Futebol Clube, time da Mooca que possuía dois goleadores negros, Simão e Mané, além do União Futebol Clube, fundado em 1901 na região da Barra Funda, time composto em sua maioria por negros.

Pois o futebol de várzea continua resistindo às práticas de uma política excludente e segue sendo praticado como uma forma de organização dos próprios moradores dessas periferias, muitas vezes sendo o único espaço de lazer e sociabilidade encontrados dentro do próprio bairro. Com a especulação imobiliária, os campos de futebol foram desaparecendo, porém a quantidade de times que surgem é impressionante. Excluída de outros meios de lazer, a população da periferia se organiza, luta e resiste para a construção de seus espaços de sociabilidade.

O modo de organização de um time de várzea permeia uma série de conflitos ocasionados pelo conjunto de necessidades resultante da divisão de classes do sistema capitalista, porém o que chama atenção na várzea é a intensa relação de amizade entre os membros do time, incluindo diretoria, comissão técnica, jogadores e torcedores, todos esses ligados por mais do que um simples objetivo como o gol. A estrutura hierárquica acentuada pela divisão desigual de poderes resultante de uma instituição burocrática não está efetivamente presente na maioria dos times de futebol de várzea, onde a tomada de decisão, comumente, é feita de maneira coletiva, perpassando assim, as funções estabelecidas. Porém, daí fica a questão: qual é então a função da diretoria? Qual o motivo de sua existência?

Os membros da diretoria ao invés de se tornarem um poder centralizador no seio dos times, prestam um serviço quase de uma chefia sem autoridade, onde as decisões coletivas geralmente prevalecem. Algumas características podem ser apontadas para os membros da direção, como por exemplo, a competência de serem uma instância moderadora do grupo, serem generosos com os demais membros do time, além de terem que possuir um bom relacionamento com as pessoas que participam do mundo varzeano, uma vez que o prestígio do time depende de sua ligação com as demais associações. A escassez de algumas dessas características pode acarretar graves crises dentro do grupo, podendo até extinguir o time. Isso demonstra que a pressão coletiva diante dos membros da diretoria, os faz como “porta-vozes” do restante do grupo e, como na várzea, geralmente não se estabelecem contratos financeiros, pois os jogadores não dependem do time para sua existência, não há vínculo empregatício que mantenha um jogador preso ao clube, muitas vezes migrando ou fundando um outro time.

Um time de futebol profissional é marcado por uma hierarquia rígida onde as relações entre jogadores e membros da diretoria são separados por inúmeras cifras de dinheiro e compromissos contratuais cuja separação do poder político se encontra visível na lapidação do jogador profissional moderno. Uma vasta rede de saber molda o atleta de modo que esse seja útil e dócil dentro e fora de campo. Não se podem contestar decisões, assim como deve ser eficiente no seu ofício de modo que garanta uma maior rentabilidade para o time e consequentemente mais investimento no mercado futebolístico. Para que isso ocorra, diversos profissionais procuram transformar o jogador em máquina, moldando-o não só psicologicamente por meio de psicólogos, mas também fortalecendo sua estrutura física por meio de fisioterapeutas, preparadores físicos, nutricionistas, entre outros. Assim como o operário no sistema capitalista deve obedecer aos requisitos e regras de uma fábrica, o jogador profissional deve seguir restritamente as regras de seu time, que por sua vez estão relacionadas às ações do mercado.

O futebol de várzea aponta como uma experiência com um maior exercício de isonomia de poder, onde apesar dos diversos problemas cotidianos enfrentados pelos moradores das periferias, a prática desse esporte continua como uma das principais modalidades de lazer associadas a um modo próprio de organização, pautado em princípios mais justos e igualitários. A autonomia dos indivíduos diante de situações adversas prevalece na várzea, proporcionando, assim, uma maior liberdade e igualdade no que diz respeito à representatividade coletiva. Só espero que, um dia, esses questionamentos das relações de poder ultrapassem os limites das quatro linhas e extrapolem para as outras atividades da vida das pessoas.

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