segunda-feira, 29 de junho de 2009

Em nome da segurança, punem-se as vítimas das tragédias urbanas

Por Sandro Barbosa

Antecedentes e contexto do clássico paulista

Na partida de futebol realizada dia 15 de fevereiro de 2009 no estádio Cícero Pompeu de Toledo (Morumbi) entre São Paulo e Corinthians pela 7ª rodada do campeonato paulista sobrou violência e faltou futebol. Ao contrário do que noticiou os telejornais e as mídias impressas, por meio de jargões e roteiros editoriais já carimbados tipo “torcida entra em confronto com policiais”, e que buscam formar a opinião pública reforçando o cenário de medo e insegurança na população, as vítimas nos acontecimentos antes, durante e após o clássico foram os próprios torcedores (e cidadãos, não se pode esquecer disto) presentes no estádio.

A confusão se iniciou durante a semana com o anúncio da diretoria do São Paulo Futebol Clube de que faria valer o seu “direito” de destinar 10% dos ingressos à torcida visitante, do Sport Club Corinthians Paulista. Esta atitude, evidentemente, contribuiu para um ambiente hostil e de indignação por parte de torcedores corintianos, e infringiu o Estatuto do Torcedor, que não estabelece limites para torcedores visitantes, e que a exemplo de outros estatutos, é uma emenda constitucional.

O fato é que deste há muitos anos o Corinthians vem realizando os seus mandos de jogos contra o São Paulo no estádio do Morumbi (do SPFC), mantendo um acordo tácito que viabilizava a divisão do estádio em iguais partes para seus torcedores. Da mesma forma, o São Paulo quando mandante dos jogos retribuía o acordo. Contudo, o anuncio da mudança em plena semana do clássico gerou muita confusão e contribuiu para se inflamar os ânimos, já que a diretoria menenge e eficiente do SPFC resolveu de última hora mudar os critérios quebrando um acordo de cavalheiros entre clubes.

Após a partida, foram divulgadas imagens dos conflitos entre policiais e torcedores, nas quais as próprias imagens denunciam a ação policial de controle e repressão à multidão presente ao estádio, prática já conhecida desde os tempos de ditadura militar. Contudo, nada foi mencionado sobre a logística que envolve este clássico, o que remete considerar as possíveis falhas na condução desta operação, ao mesmo tempo em que os agentes responsáveis pela organização – Federação Paulista de Futebol, São Paulo Futebol Clube (clube mandante) e Polícia Militar (responsável pela segurança – de quem afinal?) – (des)aparecem de cena, se diluindo nos jargões dos telejornais e nas imagens das arquibandas e dos veículos destruídos durante o conflito, restando um único agente culpado: a torcida corintiana, que pagou caro pelos ingressos, além de levar bombas de gás, balas de borracha e ser profundamente agredida num dos estádios que pretende sediar a Copa do Mundo de 2014.

A diretoria do SPFC procurou se esquivar e fugir de suas responsabilidades, pois, como se sabe, o clube mandante é responsável pelo quê acontece no estádio. Um país que pretende sediar uma Copa do Mundo demonstra ainda amadorismo, cinismo e irresponsabilidade social na organização deste esporte tão popular, culpabilizando as vítimas dos processos em nome da segurança pública, ocultando a cultura patrimonialista presente nas imagens nos telejornais que enfatiza a destruição do alambrado de vidro, das cadeiras do estádio e carros na garagem (as coisas), e apresenta em segundo plano os torcedores (as pessoas) feridos durante a ação policial dentro do estádio.

Síntese de muitas determinações sociais

Os acontecimentos do clássico somados aos tantos outros já ocorridos no futebol revelam a necessidade de se discutir seriamente o fenômeno, ao invés de se buscar a punição como remédio às mazelas sociais e tentar resolver rapidamente um problema insolúvel neste tipo de sociedade.

O jornalista Juca Kfouri contribui para um ponto de partida destacando que “se a paz que se quer é a dos cemitérios, proíba-se o torcedor de ir aos estádios e pronto! Ninguém, também, pode ser proibido de comprar ingressos para os lugares que estiverem à venda. O Estatuto do Torcedor exige, aliás, que todos os lugares sejam numerados, algo que o Ministério Público deveria fiscalizar e não fiscaliza”1. Ao invés de propor redução para 5% da torcida visitante, o Ministério deveria cumprir o seu papel de “Ministério Público” e agir em nome do interesse público, exigindo o que também faltou no clássico que é o tal “Plano de Jogo”, o que poderia ter evitado o que ocorreu durante a entrada, com a torcida são paulina, e na saída, com a corintiana. É mais fácil punir do que educar, e sabemos como andam as “pernas” da educação neste país.

Os meios de comunicação também são responsáveis pelos acontecimentos, na medida em que noticiam e na forma como noticiam. Esquecem-se (e fazem questão de esquecer) que o futebol, esporte tão popularizado no mundo, mexe com as emoções dos indivíduos, tornando-se um momento da vida social das pessoas que lhes possibilita aflorar suas emoções, já que em muitos outros momentos de sua vida as possibilidades são menores.

Contudo, tornou-se esse momento da vida social que nos remete aos processos sociais que vão além do mundo do futebol, e que devido aos interesses privados que lhe envolve, não se trata devidamente o problema ocultando suas verdadeiras causas.

A violência das torcidas é uma expressão fenomênica de diversos aspectos das violências na vida social das pessoas: no trabalho, na escola, nas ruas, na luta cotidiana pela sobrevivência, etc. Expressa tão somente que ao assumir a condição de um poder social incontrolável por meio do grupo, mediado por uma alienação e uma fragmentação objetiva que dificulta o seu reconhecimento enquanto ser social, os indivíduos sentem-se poderosos, ao mesmo tempo em que, de forma geral, não foram educados para lidar com este poder, já que sofrem com as determinações sociais que os isolam enquanto indivíduos, num estranhamento que se dá na própria produção social da vida.

Como há uma dificuldade objetiva no reconhecimento do seu pleno ser social devido a tal estranhamento, a construção da identidade ocorre por meio do grupo, e no caso do futebol por meio das torcidas organizadas. Muitas vezes esse poder social do grupo se manifesta de forma violenta e trágica, pois suas identidades se manifestam através de um poder simbólico2 que expressa sua exteriorização e consequente naturalização quando interiorizado. Por meio de um processo chamado por Sartre de serialidade3, indivíduos “produzidos” de forma serial, podemos enxergar as consequências das tendências homogeinizantes e a força das representações sociais presentes no futebol e na sociedade.

O fenômeno das torcidas organizadas de futebol precisa ser encarado como um processo social ao invés de ser sistematicamente criminalizado. A criminalização está presente em qualquer abordagem que se procura fazer sobre agrupamentos e fenômenos sociais que envolvem e expressam os conflitos da própria sociedade brasileira. Neste sentido, mundo social e mundo do futebol não deveriam aparecer dissociados, e tal fenômeno acompanhou o desenvolvimento da sociedade.

O crescimento e a organização do futebol em ligas e federações acompanhou o crescimento das cidades desde o início do século XX, como demonstra Toledo (1996 : p.15):

As construções de estádios e praças esportivas estiveram em consonância com o crescimento da popularização do futebol. Simbolicamente o futebol contaminou o imaginário urbano, recriando comportamentos, inaugurando linguagens, gírias que, como se sabe, vieram a transcender os limites das praças esportivas, enriquecendo uma linguagem popular e urbana, aproximando segmentos sociais até então separados por uma segregação espacial e étnica.

Com a expansão das cidades e a multiplicação acelerada da massa trabalhadora, devido a grande concentração do pólo produtivo, ocorreram imensas ondas migratórias para os grandes centros urbanos. Essas pessoas que buscaram nos centros urbanos melhorias para suas condições de vida se encontraram com pessoas de culturas e diferentes origens, o que expressou o distanciamento das raízes e tradições de suas terras de origem.

Neste contexto, Sevcenko (1994 : p.35) destacou que as pessoas “buscaram novos traços de identidade e de solidariedade coletiva, de novas bases emocionais de coesão que substituísse as comunidades e laços de parentesco que cada um deixou ao emigrar, essas pessoas se vêem atraídas, dragadas para a paixão futebolística que irmana estranhos, os faz comungarem ideais, objetivos e sonhos, consolida gigantescas famílias vestindo as mesmas cores [...]”.

Todavia, recentemente a vida urbana se expandiu para as fronteiras rurais, transformando o campo e a cidade em irmãos siameses no modo de vida social urbano. Esse processo não ocorre sem contradições e conflitos sociais, que se refletem em diversas dimensões da vida social, e se expressam também no futebol.

As torcidas de futebol, por sua vez, possuem a propriedade de reunir “na mesma massa” pessoas em situações e posições sociais diversas, homogeneizando, em torno do simbolismo dos clubes, as suas diferenças. Neste processo, um mecanismo importante é o uniforme de cada clube: ao mesmo tempo em que separa e distingue cada uma das torcidas, ele “despe” cada torcedor de sua identidade de classe, e o integra em um novo contexto, profundamente indiferenciado.

Segundo Araújo (1982) existe no futebol uma esfera de decisão privada, na qual cada torcedor tem liberdade para julgar e escolher segundo suas próprias inclinações, sem ter que sofrer qualquer interferência, já que suas escolhas são de foro íntimo. Alguns podem argumentar que o governo britânico acabou com os hooligans, mas se esquecem de que aqui não é a Inglaterra e de que somos fruto de uma formação social particular com especificidades próprias e contradições mais acentuadas.

Esta dimensão está, de certo modo, tomada pelo individualismo que predomina na sociedade, produzido por suas relações sociais de produção. Vivemos o reinado do “umbigo-rei” produzido pelas relações sociais do modo de produção capital, em que se coisifica as relações humanas e se humanizam as coisas, provocando conseqüências devastadoras para a vida em sociedade. A criatura dominou o criador, e neste contexto, é preciso se ater ao público que freqüenta atualmente os estádios, formado por um contingente majoritário de adolescentes e jovens, que estão em processo de formação enquanto pessoas, cidadãos e seres humanos, e são educados de diferentes formas e condições, ao mesmo tempo em que interiorizam os valores sociais produzidos por tais relações.

Neste sentido, portanto, a violência maior que se pode destacar neste acontecimento é a não promoção de um debate sério e propositivo entre as pessoas e instituições (ir)responsáveis que organizam o futebol e a sociedade, que de forma geral, permita visualizar os nexos causais do problema, e viabilizar medidas que contribuam com uma solução gradativa e não punitiva. Este acontecimento revela a falência e os limites das instituições que, diante deste problema de natureza social e com conseqüências humanas, se restringem aos seus interesses particulares e muitas vezes mesquinhos, desconsiderando os torcedores, de forma geral, como pessoas humanas: produtores e produtos da sociedade em que vivem. Como poeticamente canta o grupo O Rappa “A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego. Pois paz sem voz não é paz é medo”.

Sandro Barbosa de Oliveira
ontologicosan@hotmail.com
Referências Bibliográficas

ARAÚJO, R. B. de. “Força estranha”. In.: Ciência hoje, ano I, 1, jul/ago, 1982.
TOLEDO, L. H. Torcidas Organizadas de Futebol. Campinas: ANPOCS, 1996.
SEVCENKO, N. Futebol, Metrópole e Desatinos. São Paulo: Revista da USP – Dossiê Futebol, nº 22, 1994.

Um comentário:

Fernando disse...

Dale Pulguinha.

Porra to revoltado em ver as noticias desse Corinthians Paranaese. O que voce pensa a respeito disso? Corinthians tem q ser um só!

olha a news que saiu no terra

http://esportes.terra.com.br/futebol/brasileiro/2009/interna/0,,OI3855288-EI13762,00-CorinthiansPR+apresenta+uniforme+para+Serie+D.html