segunda-feira, 14 de julho de 2008

Os negros no Brasil: 120 anos de igualdade, liberdade, fraternidade (?)

Fonte: Brasil de Fato

Os negros no Brasil: 120 anos de igualdade, liberdade, fraternidade (?)
A opressão-exploração vivida pelos negros deve ser não só denunciada, mas combatida com o maior vigor possível pela classe que vive do trabalho

Roberta Traspadini

No dia 13 de maio, o Brasil passou longe de refletir sobre um dos maiores centros da superexploração do trabalho e da opressão particular no continente: a questão do negro, sua real libertação 120 anos depois do papel ter sido formalmente assinado por uma princesa cheia de boas intenções, cansada de diferenças étnico-raciais, disposta a implementar a igualdade social, cultural, econômica e política, nos moldes republicanos da liberdade-igualdade-fraternidade, a Isabel!

Essa ausência de debate sobre a histórica situação dos negros no Brasil chama a atenção por vários elementos que ocultam a realidade. Centremos a discussão nos princípios republicanos franceses, introjetados na cultura política brasileira quase um século depois de seu surgimento na Europa, em 1789:

1. O mito da igualdade: O fim da diferença e o início do paraíso sociocultural. A capacidade de definição de princípios, normas e valores comuns a todos os indivíduos, por mais diversos e diferentes que aparentam ser. Uma essência democrático-libertária de consolidação das relações sociais centradas no fim dos preconceitos historicamente estabelecidos. Igualdade diretamente relacionada à capacidade e eficiência de cada indivíduo no seu desejo e possibilidade de obter sucesso. A questão da cor, do gênero, da idade e da classe é superada e o Brasil dos empreendedores, autônomos, homens em igualdade de liberdade e de oportunidade migra rumo a um novo horizonte de sentido cuja exclusão não é mais um fenômeno sócio-econômico-cultural e, sim, individual.

2. O mito da liberdade: disse o poeta que a liberdade é algo que o ser humano criou, que nenhum ser humano é capaz de definir e nenhum ser humano é capaz de não entender. Liberdade, ação do ser livre. Livre: abertura das reais condições de busca de oportunidades; livre para correr atrás do próprio sustento; livre para ter visibilidade no mundo concreto do salve-se quem puder. A liberdade como direito formal de ir e vir, de controlar seus impulsos frente o senso comum estabelecido; de conter o grito frente à mansidão sistêmica. Liberdade para criar as oportunidades empreendedoras. Liberdade para aceitar o mundo como se apresenta, encontrando mecanismos de inclusão formal previamente aceitos pelo modelo vigente de ordem e progresso.

3. O mito da fraternidade: seres iguais, livres, vivendo em comunhão para além da exclusão, exploração e opressão protagonizados pelo capital. A superação dos conflitos, das diferenças. A comunhão de corpos e mentes, através de uma espiritualidade pouco material – dado que a concentração não é combatida – a ser vivenciada por todos, independente da classe a que pertença e dos valores que traga historicamente encarnados na pele. A fusão entre seres iguais, cujas condutas libertárias migram para uma harmonia social. Fraternidade em meio à disputa.

Igualdade, liberdade e fraternidade: os históricos princípios republicanos de um sonho de desenvolvimento centrado em utopias não-realizáveis dentro do mundo dominado pelo capital, cuja produção de valor centrado na troca, no lucro, só tem base material se for dinamizada pelas múltiplas formas de exploração e opressão dos sujeitos que vivem do trabalho.

A questão do negro no Brasil atual, com base na discussão anterior:

1. A real desigualdade: os dados oficiais, tanto do Ipea quanto do IBGE, comprovam que a população negra será, nos próximos anos, a maioria e, entre os formalmente incluídos no mercado de trabalho, a pior remunerada e com menor chance de ingresso em determinados setores dominados pelo caráter eurocêntrico (branco-masculino) do poder. Além disso, entre os formalmente excluídos também será a maioria. São os negros os que compõem e, permanecerão nessa ótica igualitária burguesa, ainda mais à margem, entre os que já estão excluídos (ou incluídos desde uma outra dimensão). Os trabalhadores negros brasileiros figuram, assim, entre o formal, desigualmente composto pela cor da pele e pelo salário que recebe, e o informal que, ainda quando aparenta não ser racial, denuncia nas ruas o quanto o majoritário campo negro de excluídos do Brasil. Negros e negras que sobrevivem em desigualdade suprema. Milhões de seres humanos relegados à condição permanente de escravos.

2. A castrada liberdade: tanto no direito de ir e vir, quanto nas múltiplas determinações do direito, essa maioria negra, incluída subordinadamente nas relações formais e excluída como outros tantos, depende do valor e do direito definidos previamente por aqueles cuja cor da pele, branca, estruturaram e, permanecem reiterando, o poder branco no Brasil. Livres para se conduzirem à margem e julgados como culpados, caso a conduta não seja formalizada como consenso pelos operadores do real direito. Livres para trabalhar, jogar, lutar, se expressar a partir de uma composição estético-cultural definida previamente pelas cercas criadas pela minoria branca. Livres para se vender de maneira ainda mais superexplorada que outros.

3. A assistencial fraternidade: a consolidação dos estereótipos sociais sobre o negro, como vagabundo, como malandro, como alguém sem força para criar as condições próprias do ousado mundo novo libertário. A consolidação social do desumano caráter étnico-racial no Brasil. Brancos cultos e negros bárbaros, na concepção européia sobre cultura, poder e dominação. O negro como menos preparado, menos capacitado. Um grupo, segundo os poderosos, dentro do humano, com menor qualidade intelectual, social e cultural. A fraterna capacidade do poder branco em se solidarizar com esse diferente ser, dando-lhe os piores tipos de trabalho, uma educação determinada para diferença sociocultural e pagando o valor que acredita ser pertinente a uma pessoa dessa etnia. Ou seja, o branco criando novas e eternas senzalas socioeconômicas em um processo cultural de se solidarizar, mantendo a ordem e o progresso burguês, a diferença marcada na pele.

Liberdade, igualdade e fraternidade: Algo que o humano nunca viveu, mas sempre discursou como possibilidades de realização. Que o negro ainda não conquistou plenamente, assim como seus pares que vivem do trabalho e são, cada vez mais, jogados, junto com eles, nas grandes senzalas formais/informais criadas pelo capital contra o trabalho. Uma perversa condução da história em que o mesmo grupo detentor do poder, ao narrar sua vitória, põe “em seu devido lugar” o grupo que se rebelou, resistiu e revolucionou o processo em vários gritos de alforria em nome de muitos.

Os 120 anos do fim da abolição formal no Brasil retratam, à luz dos acontecimentos atuais do mundo do trabalho e do vigiar e punir atual no meio desses, a continuidade das senzalas dos novos tempos. E, se é verdade que a senzala ampliou, e nos atuais complexos penitenciários se viva uma multiplicidade racial, no interior da condição de classe trabalhadora formal e informal, não é menos verdade que os negros seguem na primazia do destrato social, do descaso do direito, das sem razões do capital contra o trabalho.

A luta pela conquista de direitos e pela produção de uma nova vida, advinda desses grupos e sujeitos majoritários, é muito bem vinda. Primeiro, porque limpa o histórico terreno do discurso mentiroso da inclusão igualitária-libertária-fraterna, produzido pelo poder contra os supostos sem poder. Segundo, porque dá aos seus pares, trabalhadores organizados e a serem articulados na e para a luta de classes, a oportunidade de redefinir sua forma de luta, levando em consideração os particulares processos de exploração e opressão vividos no interior da classe.

Vale reforçar, por mais que a exploração e a opressão sejam, em essência, mecanismos centrais do capital contra o trabalho nas suas múltiplas formas, estes encarnam condições culturais-sociais-estéticas muito particulares em sua gigantesca perversidade. A opressão-exploração vivida pelos negros deve ser não só denunciada, mas combatida com o maior vigor possível pela classe que vive do trabalho.

Repensar para dentro da classe todos esses complexos mecanismos de dominação e sujeição requer, por parte da esquerda, todo um cuidado no diálogo com a sociedade. A questão das cotas não é diferente. É muito tênue a linha que divide uma crítica que poderia ser feita para dentro, de uma posição para fora, socialmente construída em argumentos pouco debatidos no interior da classe, que pode gerar distorções e aparentar uma adesão ou um fortalecimento dos discursos e práticas dominantes. E, se as cotas trazem à tona parte da histórica forma geral e particular de opressão e exploração de uma classe sobre a outra, já presta por si só a um papel relevante na atual luta pela superação do vivido.

Roberta Traspadini é economista, educadora popular, integrante, Espírito Santo, da Consulta Popular.

Nenhum comentário: